domingo, 20 de setembro de 2009

Os Meus Olhos e Os Seus

E vai... vai mais longe onde não se pode mais ir. Chega por lá e avista uma conjunção de novidades que escampam aos seus tímidos olhos. Ele sabe que um dia terá que voltar para casa, e se angustia com isso. Queria estar longe para sempre... mas não pode. Agora ele arranja uma casa para ficar, consegue morar na rua. O frio é intenso e não há mais nada o que fazer fora conhecer as pessoas novas da sua vida transitória neste lugar. São pessoas geniais e que olham para ele sem julgamentos prévios. Onde o bom dia e o com licença detém um significado de respeito.
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Ele se arrepende de ter vivido e nascido tão distante de lugares como esse. Tem a vontade de voltar no tempo, mas não pode também. Agora ele deve aproveitar os segundos em que está ali e aculá... Ele tenta, mas não se satisfaz. As pessoas vem e vão rapidamente, elas parecem bem estruturadas aos seus olhos e às suas palavras, e sente uma inveja daquelas pessoas. Para ele é um sossego, pode conversar nas portas, fragilizar-se e tomar um bom vinho com os antigos. Mas nada, ele não era dali, era de outro lugar. E agora?
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Pensa: para quê tudo isso? Descontenta-se com o que se vê e o que se sente. Não pode viver aqui, não pode viver onde estava. As pessoas daqui se parecem com as de lá. Ficam lhe lembrando as mágoas antigas por meio de fisionomias parecidas... um rosto aqui, uma cintura aculá e logo está pensando em pessoas antigas, que mudaram sua vida e foram embora não pensando nele. E agora?
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Ele já está no meio da estrada e não sabe mais o que fazer. Se pensasse mais talvez descobrisse para onde as coisas estão caminhando. Decide então ver no que tudo vai dar. As coisas passam através dos seus olhos como figuras adormecidas, sem individualidade, sem anima, nem gosto e nem cheiro. Parece tudo uma figuração. Perde o senso de realidade e tenta olhar para si, temendo cair e não voltar mais (desejando não se movimentar). Cai um livro no chão, e vai pegar para uma jovem desconhecida. Ela olha para ele com um sinal de piedade e de 'absolutamente nada', ela diz um simples obrigado e ele um outro nojento de nada. Contatos superficiais. Ela diz que vai montar um projeto sulamericano, ele se perde no pensamento em tentar imaginar que há algo por trás daquela 'inocente' conversa. Pega a sua água e bebe mais um pouco para abafar o suor que lhe entorta o corpo, e fala um outro obrigado e vai embora , ele fica parado olhando para o tempo perdido. Não lhe interessa mais.
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É frio. Talvez ele melhore algumas coisas. Coitado. Fez tudo o que uma soberana quis e, quando acordou não viu nada feito para si mesmo. Erro duplo. O primeiro passo nunca foi dado. Os passos reversos agora são muito duvidosos e não dá mais para confiar neles. A linguagem passa a ser suja, não visita os prédios principais da cidadezinha visitada. Volta para casa com o mesmo rosto de chatice quando acorda e vai para a próxima lição do dia. Muitos aprendem a encarar o dia, ele espera uma nova soberana. Sem ela, as coisas perdem o sentido. Mas agora foi.
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O coitado senta num banquinho da praça, sozinho de madrugada. Fica contando o número de ratos que passam de um esgoto a outro, entre duas ruas paralelas. Sozinho procura não imaginar nada, enquanto não venha ninguém tentar conversar com ele. Aparece alguém. Alguém muito jovem que olha para ele às distâncias. Senta do seu lado. É outro alguém desconhecido, que no caso é desconhecida para ele. Os mecanismos de defesa acionam a neurose do coitado e ele fica mudo, enquanto a garota lhe passa a testa de olhares cheios de perguntas. Ela quer lhe dizer alguma coisa, mas se sente inibida pela postura de pedra conseguida pelo neurótico. Ele pensa que o processo é bastante natural e finge não observar ninguém do lado dele. Ela, então, anseia ir embora quando o coitado toma a iniciativa de só lhe tocar o ombro para lhe fazer uma pergunta insignificante. Ela olha para ele e responde também algo insignificante.
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Os dois coitados começam a rodar conversa no meio da madrugada. Ambos sabem o que tem a fazer e o que dizer, ambos conhecem os seus próprios anseios e o que está por trás daquela conversa de roda-gigante que parece não ter o fim no derradeiro começo. Após a conversa ter sido consumidoa por si, eles trocam os olhares finais em silêncio, dão um suspiro de misericórdia e nada fazem. A agonia toma conta do lugar, mas não há reação por nenhuma das partes. Mais uma história perdida, mais uma nobre tentativa dos dois para se salvar de suas grades... Mais uma tentativa falha.
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Ele se arrepende ao vê-la suspirar. Ela vai embora e ele começa a imaginar o quanto seria feliz com ela, ou não, ou o quanto ela seria feliz com ele, ou não. Monta um baralho de imagens mentalizadas, desconscientizadas, e dá um outro suspiro afimando o quanto poderiam ser felizes. Volta a contar os ratos nos esgotos. Volta a pensar que a vida é pequena e que não há propósito para ele, e que não há para mais ninguém.
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Levanta-se do banco. Não passam mais ratos nem pra lá e nem pra cá. Enjoa-se, enoja-se. Caminha para casa tentando dar sentido para o que não há sentido. Buscando respostas onde jamais houveram perguntas. Arrepende-se mais uma vez. O que será agora? Jamais se planejou. Ainda busca alguém, algum sentido. Não olha para si. Vai atravessar a rua que não tem carros e sente algo doer.
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Seu coração dói. Põe a mão no peito esquerdo e a dor aumenta. Faz um gesto com a mão de parecer arrancar o próprio coração, o que já parece tarde, porque seu rosto acusa o que a decepção veio lhe tomar. Ajoelha-se no meio da rua às 03:27 da manhã, nota um formigamento forte nos cantos dos braços, pisca mais uma vez a vista porque a neblina cobre os olhos. Agora sim ele cai no pavimento e olha para o céu, se contorcendo de dor. Reconhece que está morrendo de uma causa que aflige o seu coração, mas não entende direito o que lhe ocorre. Finalmente parou de pensar. Reconheceu finalmente que sua última chance passou pelos olhos daquela garota, e se arrependeu de não estar abraçado com ela naquele momento.
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Queria estar com todo o mundo, mas agora não pode. Queria voltar à infância e brincar com sua irmã mais nova, mas agora nada. Queria nascer de novo para mudar a história, agora entendia tudo. Entendia também que uma chuva de roedores passava pela rua, a qual foi sua última percepção. A vista ficava branca com o passar dos segundos, e ninguém aparecia para socorrer. Ninguém aparecerá, afinal, a grade que cerca o coração encurva a coluna do ser para baixo. E é assim que ele morre, curvando-se como um feto para tentar amenizar a dor.
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O garoto não era inocente. Não era burro. O garoto era vivido demais. Era a esperança dos seus pais e vizinhos de outra cidade distante. Infelizmente, o menino era nada mais que um projeto transfigurado por outrem. Fazia questão de mencionar isso em seus atos-falhos 'inconscientes'. Morreu como deveria, no meio de uma rua, no meio da caminhada por onde começa o nada e termina o nunca. Jamais sairá do meio do caminho. Voltando a pensar na garota... Ela sim teve sorte. Ela agora pode encontrar alguém menos narcisista. Ela ainda tem chance.
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O jovem levanta, olha para o teto, não pensa em nada. Sente-se mais vivo do que nunca. Tropeça na cabeceira da cama e cai no chão. É hora de almoçar e está muito atrasado para ir à faculdade. Há três chamadas de sua noiva no celular, claro, talvez chateada por outro atraso. Ele se arruma, desce as escadas, pega um prato mal feito pela sua mãe, entra no carro e dirige apressadamente. No meio da pressa, atende ao chamado da noiva. Ela quer lhe encontrar na esquina do bloco B, antes da segunda aula.
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Ele chega a tempo. Percebe no rosto da noiva uma ânsia contida. Ela o abraça forte primeiro, sem razão. Ele corresponde ao abraço, mas sem entender o que se passa. Ela simplesmente diz em suas costas:
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-'Estou grávida.'
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O garoto entendeu o que lhe aprisionara. Voltou a dormir em sono profundo.

Um comentário:

Anônimo disse...

O seu também me lembra aquela conversa na festa country.
Encontros fortuitos mal aproveitados e uma constante sensação de desperdicio de vida.