quarta-feira, 10 de março de 2010

Reflexo

Abri os olhos novamente. Consegui observar uma mancha de luz presa numa lâmpada fosca.

-Onde está?

Era forte o cheiro que emanava da rua. Não havia luz. Tudo escuro e aberto. Portas abertas, janelas escancaradas e um barulho lá fora. O sussurro de um médico batia na porta e eu não conseguia recobrar a consciência. Não podia me mexer, mas ele estava lá, sabia que com um chapéu e smoking pretos, sempre atrasado para todas as suas coisas, olhando indefinidamente para o relógio.

Numa pressa, batia cada vez mais forte. Recobrei meus movimentos e consegui levantar e caminhar lentamente para a porta.

Abri-a.

O rosto do doutor estava pálido. Seus olhos verdes cheios de sangue me comunicavam uma notícia perturbadora.

-Boa noite.

-Boa noite. Retruquei.

-Encontrei quem você procurava, meu amigo. Mas, as notícias não são boas.

-Quem?

-Trombei com sua outra parte na esquina, agora pouco.

Atônito fiquei. Sabia muito bem do que se tratava.

-Sinto muito que suas lembranças tenham ido embora, mas ela veio aqui novamente na semana passada. Não pude evitar. Agora pouco ela trombou comigo, e sua expressão não estava boa. O que ocorreu?

Um grito se ouviu no interior das portas entreabertas do meu ego. Era ela de novo. Às vezes saía, corria e bagunçava o que eu tentava sempre por em ordem. A merda do médico continuava olhando para mim esperando alguma resposta lógica, mas pena que essa era a única que faltava. Não havia razão que explicasse os fatos.

-Discutimos novamente, disse-lhe.

-E agora, o que você fará?

-Nada. Se ela quiser ir, que se vá. Não tenho mais nada a ver com suas ações.

Eu sabia muito bem que não era assim. Um dependia do outro, mas para que o médico se conformasse, seria desse jeito que a conversa continuaria.

-Não entendo uma coisa, disse o médico. Como é que você esqueceu a porta aberta novamente?

Novamente fiquei pasmo. Não era possível que o médico houvesse entendido tudo tão depressa. Senti-me despido, envergonhado. Realmente, era um erro meu e o médico havia entendido, e disse-me antes de ir embora:

-Durma tranqüilo que ela não voltará mais.

-Como é!?

De imediato percebi uma mancha de sangue em meu abdômen. Estava feio e explicava minha dificuldade em levantar e recobrar a consciência. O médico foi embora, e me deixou ali ferido. Fechei a porta da frente.

Fechei as portas dos quartos, as janelas, a porta da cozinha, da saleta, do porão.

Numa piscada de olhos, cheguei a vê-la jogada nas escadas, ofegante, olhando para mim de cabeça para baixo, triste.

-Você sabe por que me deixou fugir, não é? Disse-me.

-Não.

-Deixe de ser fraco!

Tentou se movimentar, mas o corpo já não conseguia responder aos impulsos.

-Eu era tudo o que você tinha! E agora?

-Agora nada. Como o médico me disse, você não voltará mais.

Ela começou a chorar. A esclerótica ficava mais evidente quando virava os olhos e entrava em uma convulsão, talvez por conta do grave ferimento causado pelo médico. Não conseguiu formular mais nenhuma palavra e a vi partir assim.

-É hora de trocar as cortinas, pensei comigo mesmo.

Abri os olhos novamente. Consegui observar uma mancha de luz presa numa lâmpada fosca.

-Onde está?

Estava muito claro, e o vizinho estava esperando na porta. Era dia de cinema e outra vez me vira atrasado. Olho para o espelho da cômoda e avisto-a novamente. E, linda e terna como sempre, dizia-me que jamais iríamos nos separar. Continuei olhando para ela, e esbocei um sorriso malicioso, sabendo já que hoje era o último dia de nossas vidas.

Continuei olhando para sua face e senti uma profunda saudade de seus olhos verdes, do meu jeito alegre, de suas vestes com estampas de flores coloridas, dos meus inovadores apertos de mão, de suas piadas fora de hora, dos pães errados que eu sempre comprava para o jantar, do jeito de nos abraçarmos e do modo de nos despedirmos.

Ela se apagou do espelho, e eu não voltei a fechar os olhos.